Os refugiados em nós
Felicidade, engajamento, liderança e desenvolvimento são temas de meu frequente interesse de estudo. Entretanto, nesta última semana surpreendi-me com meu rendimento na leitura de tais temas.
Na correria do dia-a-dia, sem parar para pensar, fui lendo, ouvindo, conversando. Quando vi era domingo, quando dei por mim a semana havia passado em uma corrida frenética em que parei por poucos minutos, durante uma caminhada para deslocamento de um lugar para outro da cidade.
Nestes pequenos momentos de reflexão me deparei com a barbárie humana. As fotos do pequeno refugiado afogado na praia. Um aperto no estômago e olhos umedecidos; acho que alguma lágrima escorreu, mas a vida estava corrida.
E quando vi, era domingo à noite. Quando dei por mim, parei. Quando parei, me percebi. Dei-me conta do cansaço que me abatia, dei-me conta de como me defendia. Dei-me conta de que nem seu nome me lembrava, mas ele estava lá, tatuado na alma, para, talvez, nunca mais sair.
Fui ver seu nome, e, dessa vez, talvez abatida pelo cansaço, minhas defesas não me resguardaram e chorei. E me dei conta de meu próprio pranto. Doeu na alma saber que Aylan morrera por poder, por guerra, por território. E seguindo a música de João Bosco, estava lá, mais um corpo estendido no chão.
Só que dessa vez tinha a foto do rosto, acompanhando a foto de um gol, tinham as pragas, mas também as rezas, e no lugar de silêncio, ouvimos gritos viscerais de um pai servindo de amém.
Em meu remorso vão, também me dou conta de que minha ocupação era para não ver. Como tantas outras pessoas fazem por ai. Preenchimento vazio e maníaco para não deixar doer.
Para não doer os refugiados que somos todos nós, os mendigos que somos todos nós, os de diferentes religiões que somos todos nós, os de diferentes cores, de diferentes nacionalidades, diferentes tipos, diferentes opiniões.
Essa mania que temos de erradicar o diferente, porque o diferente dói. Sem perceber que nós mesmos somos os diferentes.
Por ter muitos motivos de pranto, permito-me também recordar as cenas da construção do muro da Hungria, e reviver o horror que senti ao presenciar tal notícia. Um pavor abafado e impotente de relembrar e reviver história.
Pergunto-me se ninguém se lembra do muro de Berlim. E me lembro de que aqui no Brasil também parece que esquecemos a história, parece que Chico Buarque previa que essa passagem iria ficar desbotada na memória.
Fato visto em manifestações nas quais as pessoas pedem a volta de um período negro, de uma “página infeliz da nossa história”.
O terror das imagens de épocas que não vivi ficou incrustado em minha alma. Imagens de guerra, de Awschwitz, de Hiroshima, de relatos das guerras, dos filmes, dos livros, dos sobreviventes.
Lembro-me de uma citação de Hanna Arendt que diz que o maior revolucionário se transforma no maior conservador um dia após a revolução. Concomitantemente, salta-me à memória a declaração do líder húngaro e sua intolerância ao outro.
Ernest Cline, em um vídeo chamado “Dance, monkeys, dance” (https://www.youtube.com/watch?v=m89rYW0epTs), critica de maneira brilhante nossa arrogância diante da vida, nossa intolerância ao mundo, à natureza e à própria humanidade.
Na minha angústia rouca, penso que o fato de nos alienarmos em nossos mundos perfeitos de mídias sociais, de segurança atrás das grades de prédios e de muros altos, não impede a dor e o apodrecimento da chaga cotidiana e interna.
O fato de negarmos esse urro existencial não impede que ele cause suas dores dentro de nós. A peça F(R)ICÇÃO (https://www.facebook.com/friccaoteatro?fref=ts) nos remete ao cenário brasileiro desta dor.
Mesmo sem ter a real experiência do que estão passando os refugiados, fico marcada enquanto ser humano pelo desespero do naufrágio, pelo medo da violência e pelo desamparo do desalojamento.
Percebo que o mal estar é visceralmente conectado à parte humana, ao sentimento de fazer parte do coletivo. Meu desencanto e desalento se assentam com a impotência, o terror, a descrença, o medo e a dor e tomam seu lugar.
Penso em minha história, enquanto ser humano. Não somos todos refugiados? Não somos todos imigrantes? Não somos todos humanos? Não somos todos animais? Não somos todos natureza?
Carregamos em todos nós um pedacinho da morte de cada um dos refugiados. Carregamos o sangue que dói nas veias.
E a esperança de outros tantos corações abertos, que recebem em seus braços e suas terras, aqueles a quem a vida ainda permeia, para que possam, em novos sobre humanos esforços, reacender suas esperanças nisso que chamamos humanidade.
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