Drogas: doença, fuga ou resposta do indivíduo à pressão da sociedade?
As drogas nos acompanham desde a pré-história. Sempre ocuparam na sociedade um lugar desgraçado e sagrado, sinônimo de cura, magia e milagre.
Drogas não são apenas as ilícitas, mas também a cerveja, o tabaco, o café, o açúcar, os antidepressivos, sedativos, entre outras.
Muitos pensam que a dependência química, a toxicomania, é um problema de quem padece e não conseguem ver que este é um efeito social, uma produção de ordem coletiva.
A sociedade contemporânea recorre a substâncias ativas para dormir, trabalhar, fazer sexo. Mas, partimos do pressuposto de que existe um indivíduo ou grupo de indivíduos toxicômanos, com os quais nada temos em comum.
Precisamos pensar a toxicomania como um órgão do corpo humano, que integra um sistema muito maior e seu funcionamento só acontece em função desse sistema.
Para entendermos a toxicomania hoje, é preciso analisar as transformações que a vida social e subjetiva tem atravessado com a modernidade, a partir do século XVI.
Existe um desgaste da tradição, da experiência transmitida de geração em geração e que antes dava consistência ao ser. O que tínhamos como amparo simbólico perdeu força, fragilizando nossos laços de pertencimento.
Vivemos num mundo sem bússolas, onde nada ou ninguém mostra o caminho a ser seguido e no qual devemos nos construir por nossos próprios meios. Estamos voltados para si, para o cultivo da interioridade e introspecção como acesso à verdade, tendo como característica o investimento e o domínio do corpo.
O mundo estável é aquele capaz de ofertar referências claras, de indicar o que é esperado de cada um com base no lugar de nascimento. Entretanto, na modernidade passamos a demandar um modo de subjetivação não mais referido a um grande saber que confere amparo e estabilidade à existência.
O particular passou a se sobrepor ao universal e assistimos pessoas vivendo experiências cada vez mais baseadas no caso a caso.
O cenário social sem as referências mestras passa a ser de extremo desamparo. A dúvida e a escolha nascem e apontam uma multiplicidade. Numa vida de parâmetros e posicionamentos transitórios, nos desorientamos.
O desejo de tutela e submissão surge para evitar este desamparo. Buscamos proteção e segurança, recusamos a liberdade e assim a ciência passou a ocupar este lugar em nossas vidas: o lugar de um Outro autossuficiente e onipotente para nos apaziguar com sua oferta de sentido.
Dispensamos o trabalho da reflexão e nos entregamos radicalmente a algo (droga, por exemplo) ou alguém que nos poupe do confronto com a incerteza e angústia perante as escolhas.
A ciência desponta como discurso cuja força rende no poder de fazer crer que é capaz de revelar ao indivíduo muito mais do que ele próprio a seu respeito.
Cada vez mais as identidades se apoiam na dimensão corpórea. Buscamos a saúde e o corpo perfeito por meio da autodisciplina. Temos um sujeito que se autocontrola, autovigia e autogoverna. Temos no corpo e no ato de se periciar a fonte básica de nossa identidade.
A sociedade está obcecada pela boa forma e gestão dos riscos à saúde, que funciona restringindo o uso e a diversificação dos prazeres, controlando e calculando os excessos.
O que a norma dominante instaurada (que não faz jus à diversidade expressiva humana) produz na direção do transbordamento e do descontrole pulsional são os efeitos impensados disso tudo.
A figura dos toxicômanos engendra a outra face da moeda dessa obsessão de que falamos. Ela é a figura do indivíduo que não cuida de si e é incapaz de querer de forma adequada e de controlar a necessidade de drogas, por exemplo, mas pode ser também de sexo, consumo, comida.
Os toxicômanos carregam a fraqueza da vontade e não é incomum falarmos deles como pessoas com defeitos de caráter, como indivíduos enfraquecidos em sua atenção e disciplinamento.
Isso acontece, por exemplo, no AA, Alcoólicos Anônimos e NA, Narcóticos Anônimos, que atribuem a eles classificações de juízo moral, ora constitucionalmente defeituosas, ora psicologicamente desviantes.
Classificações que transitam entre a desqualificação e desautorização. A pobreza material de uma considerável parcela dessa população é vista como pobreza moral, funcional e subjetiva.
Ao convocarmos um outro mais qualificado a falar pelos toxicômanos, por causa da precariedade destes, reiteramos os mecanismos de anulação e silenciamento próprios da doença.
A vigência da relação com a droga que causa esta anulação do indivíduo passa então a se repetir em outras relações, no sistema de cuidados e no laço social.
Sentir na contemporaneidade parece ser urgente. Nossa sociedade está excitada, a necessidade de viver no limite e correr riscos mostra nosso anestesiamento.
A busca para sentir-se emocionalmente vivo faz com que o uso de drogas seja desenfreado.
As drogas sintéticas parecem contribuir para a necessidade de rendimento desenfreado a que somos exigidos em todas as esferas de nossa vida, e também no lazer intensificam ao máximo nossa “performance”.
Mitificamos, também nessa esfera, o herói, aquele não humano. Esquecemos que o corpo é também o da finitude, da fadiga, da doença, do tédio, da impotência e da fragilidade e estamos numa cultura que tenta desvencilhá-lo destas “amarras”.
Buscamos aperfeiçoar o corpo, mas o estamos desalojando de suas fragilidades. Estamos então diante do ideal de um homem não perecível e não sofredor, mestre de si mesmo.
Buscando o “estar mais do que bem”, maldizemos os sofrimentos da vida, consagrando a indústria farmacêutica com seus produtos “milagrosos” que sustentam a ideia de uma vida sem sofrimento.
O sofrimento não é mais visto como uma via de acesso ao humano, mesmo que incômoda, mas algo a ser extirpado, uma chateação. Assim, o mal estar inerente ao viver é abafado.
Drogas lícitas, ilícitas ou medicamentos despontam como salvação para a dor do viver ou a extirpação da possibilidade de encontrar a via de acesso a si mesmo.
Referência: Sociedade Fissurada – Para Pensar As Drogas e A Banalidade do Vício – Nova Ortografia
Costa Dias, Andrea; Tiburi, Marcia
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