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Diário de bordo

Conta-se a história que Arlequim, depois de uma expedição à terras lunares, vai dar uma entrevista coletiva. Quando perguntado sobre as maravilhas que viu, atravessando por lugares tão diferentes, Arlequim responde que em toda parte era tudo igual, como em nosso planeta. O auditório, que estava a esperar grandes notícias, questiona-se como o rei não conseguira observar nada em tamanha expedição. Arlequim continua a repetir seu discurso.

Um audacioso espírito aponta Arlequim e pergunta se quer que todos acreditem que sua veste é feita do mesmo tecido na frente e na traseira. A roupa do rei mostrava justamente o oposto do que falava, era remendada, desfigurada de trapos de diferentes tamanhos, descombinada de cores fortes e brilhantes, mosaico de marcas do universo.

Arlequim continua com seu monótono discurso, sem aceitar a verdade que suas vestes mostravam. O espírito audacioso zomba de Arlequim e pergunta: “Tu te vestes com o roteiro de tuas viagens?”. Arlequim então tira o casaco que o desmente. Abismado percebe os panos de seu traje. Eis que por debaixo do primeiro casaco Arlequim usa um segundo farrapo, também costurado, matizado. Arlequim então, aterrorizado, continua a tirar sua roupa. E, embaixo de cada peça, mais outra, remendada, costurada, matizada. A plateia explode, cada vez mais surpreendida.

Arlequim parece nunca chegar à última peça. De repente silêncio: eis Arlequim nu. Estupefatos todos olham o Imperador da Lua todo tatuado, sua pele multicor, como as vestes que se despiu. Até mesmo sua pele desmente a unidade de seu discurso. Arlequim é marcado pelos lugares em que passou. (Texto adaptado)

Tive a incrível oportunidade de ser tatuada pela presença em um grupo de mulheres singulares, estrangeiras no Brasil, Arlequins elas mesmas, que se encontram frequentemente para “dar uma pausa” na vida corrida e retomar uma tradição um tanto esquecida em nossa pós-modernidade tresloucada: almoçar com calma e conversar sobre a vida.

Na primeira parte de minha viagem, senti-me como entrando em outro mundo, mais ou menos como Alice no país das maravilhas, exceto que ali era o oposto de um mundo desconhecido e assustador, era um ambiente “mágico”, fora do transtorno caótico de São Paulo, em dezembro. Calmaria e torpor pareciam começar a se instalar. A alegria da confraternização enlaçava cada uma na trama da vida da outra. E também contagiava a estrangeira, que era eu.

Como Alice, minha curiosidade em conhecer esta terra foi me assolando. Queria entender cada conversa da roda e, quando a conversa se dividia, desejava ter a habilidade de ouvir três conversas ao mesmo tempo.

A paixão com que contavam suas vidas, seus pesares, fazia-me apreender cada palavra, e compreender, mais uma vez, que a vida não tem idade. Sempre admirei mulheres assim, que são humanas, lutam e vivem com intensidade, entendendo que a felicidade é um momento, que só podemos senti-la porque também conhecemos os seus opostos: a dor e a tristeza.

Eu estava ali, completamente estrangeira, no entremeio, nem lá nem cá, navegando pelos mares desconhecidos dos sentimentos pelos quais elas me conduziam. Agora a pensar, percebo que viajei pela alegria altruísta convivendo paradoxalmente com as tristezas e angústias de muitas mães, viajei pelos mares da independência e da realização profissional, convivendo pacificamente com a realização pessoal, naveguei pelas dores da impotência diante da vida (muitas vezes cruel para alguns), viajei pela fortaleza e coragem, pouco percebidas.

Assim foi minha primeira parte desta viagem.

Na segunda parte fui chamada a assumir o comando da embarcação. Para quem estava de passageira foi um grande susto, apesar de já esperado. Afinal, eu era a convidada. Como eu, que estava ali, apreendendo e aprendendo tanta vida, poderia falar algo? Como eu, que tinha a idade da maioria das filhas delas, poderia acrescentar em alguma coisa? Eu, que era a estrangeira…

Lembrei-me de Shakespeare quando escreveu que a maturidade não diz respeito a quantos anos se viveu, mas sim às experiências que foram vividas. E, a meu ver, como foram vividas essas experiências.

Engasga daqui, engasga dali, somem as palavras. Até que, mesmo com o novelo de lã na garganta, joguei um fio na roda para contribuir com a grande teia de experiências. Alguns pensamentos sobre esse tal “equilíbrio emocional”, que de equilíbrio não tem nada. Afinal, o que na vida real é equilibrado? Quem sabe o caminho para nos achar não seja na verdade nos perder? Quem sabe os desequilíbrios não existem para nos depararmos com nossas próprias capacidades?

Apesar dos pareceres, das dores e da confusão que muitas vezes nos toma as entranhas, parecia que todas elas estavam disponíveis a tentar, quantas vezes fossem necessárias. Estavam tentando, a trancos e barrancos, como muitos de nós.

Certa vez ouvi uma frase em um filme: “A grandeza, não importa o quão breve, permanece com o homem”. Sinto agora que a grandeza de cada uma delas, transbordante cada uma de sua forma única, ficará tatuada em mim.

E você, já se desequilibrou hoje?

PS: Thanks for the wonderful opportunity to be amongst such powerful women.
(Obrigada pela maravilhosa oportunidade de estar entre mulheres tão poderosas).

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